domingo, 22 de fevereiro de 2009

Por que as pessoas mentem?


O interesse despertado pelo caso Paula Oliveira tem a ver com a consciência da importância da mentira em nossa vida. A ciência ajuda a entender o que nos leva a enganar os outros – e a nós mesmos

SOLANGE AZEVEDO, CELSO MASSON E ANDRES VERA. COM DANILO SOARES

Matéria da Revista Época

“A mentira é muita vez tão involuntária como a transpiração”, constata Bentinho, em Dom Casmurro , ao surpreender a si próprio escondendo da mãe o amor por Capitu. Como de costume, Machado de Assis retrata uma verdade: mentimos o tempo todo, até sem perceber. Mentimos sobre nossa altura, nosso peso, nossa idade. Mentimos para nós mesmos, para suportar um recalque. Mentimos para nossos pais, para tranquilizá-los, e para nossos filhos, para que não sofram. Mentimos para os amigos, para não lhes ferir a autoestima, e para o chefe, para justificar um atraso. Mentimos para o guarda, para não tomar uma multa, e para o Fisco, para pagar menos impostos. Atletas mentem para competir dopados, investigadores mentem para apanhar criminosos, políticos mentem... por vários motivos. Há mentiras inofensivas; outras mudam a vida de pessoas e até provocam guerras. O fascínio despertado pelo caso de Paula Oliveira, acusada de inventar um ataque neonazista na Suíça , se deve em parte a isso – à consciência do poder da mentira em nossa vida.

Eles ficaram famosos por inventar mentiras sobre si mesmos

Kelly Tranchesi

Essa foi a identidade usada por Kelly Samara Camargo dos Santos para aplicar golpes. O pseudônimo sugeria parentesco com a dona da butique de luxo Daslu. Acusada de furto, falsidade ideológica e estelionato, Kelly afirmou que mentia para chamar a atenção da mãe, que a abandonara aos 2 anos

O herdeiro da Gol

Marcelo Nascimento da Rocha chegou a conviver com famosos (na foto, a modelo Joana Prado, a Feiticeira) fingindo ser filho do dono da companhia aérea Gol. Em 2005, ele lançou o livro Vips – Histórias reais de um mentiroso, em que narra esse e outros golpes que o levaram à prisão


O conde de Hollywood

Diretor de filmes como O ouro e a ambição, Erich von Stroheim (1885–1957) foi uma celebridade do cinema mudo. Anos depois de sua morte, descobriu-se que ele não era um conde austríaco, como dizia, e sim filho de um chapeleiro de Viena que emigrou para os Estados Unidos. Sua autobiografia é repleta de invencionices


Clark Rockefeller

Passando-se por herdeiro da família americana de magnatas, Christian Karl Gerhartsreiter, um alemão que fora estudar nos EUA, arrumou emprego, casou-se e teve filhos. Ao ser preso em Baltimore, em agosto passado, vivia sob outra identidade falsa: Charles Smith
Eles ficaram famosos pelo talento para enganar os outros de forma convincente


O repórter que mentia

Jayson Blair publicou mais de 600 reportagens no The New York Times antes que os chefes começassem a desconfiar de suas histórias “boas demais”. Descobriu-se que Blair inventava fatos e entrevistados. O jornal pediu desculpas aos leitores e admitiu que o episódio foi um dos pontos mais baixos de seus 152 anos de história


O precoce

Ainda adolescente, Frank Abagnale Jr. fez-se passar por piloto de avião, médico, advogado e ganhou milhões de dólares. Em 1974, foi solto sob a condição de ajudar o FBI a esclarecer outros golpes. Sua história rendeu o filme Prenda-me se for capaz (2002), de Steven Spielberg, com Leonardo DiCaprio


Autobiografia ficcional

Em 2003, a apresentadora de TV Oprah Winfrey transformou em best-seller as memórias de James Frey, que narrava sua suposta vida como viciado em álcool e drogas. Três anos depois, Frey admitiu que o livro era forjado. Foi condenado a ressarcir os leitores que se sentiram enganados. O livro vendeu mais
de 5 milhões de cópias


O Camaleão

O francês Frédéric Bourdin ganhou esse apelido por ter assumido 39 identidades em 15 países. Ele conseguia se passar por crianças e adolescentes, mesmo já trintão. Seus disfarces enganavam médicos e policiais. Curiosamente, Bourdin nunca buscou lucro com suas fraudes


Os erros trágicos do caso Paula

Como uma história nascida de uma pequena mentira se transformou num escândalo internacional

NA JUSTIÇA
Paula Oliveira, a imagem do ultrassom tirada da internet, e os ferimentos supostamente autoinfligidos pela brasileira. Por último o legista Walter Baer (de bigode) junto com o comandante da polícia de Zurique.
No dia 16 de janeiro, um grupo de amigos de Paula Oliveira recebeu um e-mail singelo, escrito em inglês mediano, que pode ser traduzido assim: “Então, eu queria ligar para todos, mas pelas razões abaixo vocês vão entender que eu preciso economizar cada centavo a partir de agora, então não seria possível... de qualquer forma, é bem difícil achar um jeito melhor de dar a notícia. Então aí vai. A foto fala por si. Vocês sabem contar? Para aqueles que não têm meu celular (seguia-se o número), acho que não vou estar aqui à tarde. Então podem me ligar ou mandar um SMS mais tarde ou no fim de semana para maiores esclarecimentos =) (o emoticon do sorriso na internet). E, sim, eu não poderia estar mais feliz!”.
Um mês depois, Paula Oliveira dificilmente poderia estar mais infeliz. Passou os últimos dias trancada com a família no apartamento onde mora, em Dübendorf, cidade de 20 mil habitantes do cantão de Zurique, no norte da Suíça. Desde a quarta-feira, é acusada de ter forjado uma agressão de neonazistas no dia 9. Três homens teriam talhado sua pele com um estilete e a feito abortar os gêmeos que estaria esperando. A polícia suíça a acusou de ter inventado tudo e de ter infligido a si mesma os ferimentos. Até a gravidez anunciada alegremente aos amigos na segunda quinzena de janeiro seria uma mentira.
O e-mail que ela enviou aos amigos despertou desconfiança em pelo menos uma delas, que disse a ÉPOCA ter visto Paula mentir em outras ocasiões. No pé da mensagem descrita acima, ela anexou uma pequena imagem em formato JPG , um dos mais comuns para fotos digitais. Batizado “Twins 6 wks”, o arquivo era a reprodução de um ultrassom de um útero prenhe de dois gêmeos. Uma busca na internet localizou rapidamente uma imagem idêntica, com o mesmo nome, no site about.com, ilustrando uma página sobre os diferentes estágios de uma gravidez gemelar. De posse da informação, ela trocou e-mails com outros conhecidos, comentando que não seria a primeira mentira inocente da amiga. Não imaginavam em que ela iria se transformar.
Por Eduardo Simantob, de Zurique, Marco Bahé, do Recife, e José Antonio Lima. Colaboraram Letícia Sorg, Solange Azevedo e Thiago Cid

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